QUANDO VENCER SIGNIFICA MORRER
Certamente que muitos daqueles que gostam de cinema já viram "Fuga Para A Vitória" (1982), um dos melhores filmes de futebol que se fizeram até agora. Neste filme de John Huston, Sylvester Stallone e Michael Caine integram uma equipa de prisioneiros num campo de concentração alemão, onde, com a ajuda de reforços de peso como Pelé, Bobby Moore ou Osvaldo Ardiles, emtre outros, conseguem derrotar o orgulho uma forte equipa alemã. O que poucos saberão é que esse filme é baseado numa história verídica que teve um final muito menos feliz, mas que demonstra fielmente que existem valores que transcendem a própria vida e pelos quais valerá a pena morrer. Foi o que aconteceu com um grupo de jogadores russos, há mais de 60 anos atrás.
"Tudo começou em 19 de setembro de 1941, quando a cidade de Kiev (capital ucraniana) foi ocupada pelo exército nazista, e os homens de Hitler aplicaram um regime de castigo impiedoso e arrasaram com tudo. A cidade converteu-se num inferno controlado pelos nazistas, e durante os meses seguintes chegaram centenas de prisioneiros de guerra, que não tinham permissão para trabalhar nem viver nas casas, assim todos vagavam pelas ruas na mais absoluta indigência. Entre aqueles soldados doentes e desnutridos, estava Nikolai Trusevich, que tinha sido goleiro do Dinamo.
Josef Kordik, um padeiro alemão a quem os nazistas não perseguiam, precisamente por sua origem, era torcedor fanático do Dinamo. Num dia caminhava pela rua quando, surpreso, olhou um mendigo e de imediato se deu conta de que era seu ídolo: o gigante Trusevich.
Ainda que fosse ilegal, mediante artimanhas, o comerciante alemão enganou aos nazistas e contratou o goleiro para que trabalhasse em sua padaria. Sua ânsia por ajudá-lo foi valorizado pelo goleiro, que agradecia a possibilidade de se alimentar e dormir debaixo de um teto. Ao mesmo tempo, Kordik emocionava-se por ter feito amizade com a estrela de sua equipe.
Na convivência, as conversas sempre giravam em torno do futebol e do Dinamo, até que o padeiro teve uma idéia genial: encomendou a Trusevich que em lugar de trabalhar como ele, amassando pães, se dedicasse a buscar o resto de seus colegas. Não só continuaria lhe pagando, senão que juntos podiam salvar os outros jogadores.
O
arqueiro percorreu o que restara da cidade devastada dia e noite, e
entre feridos e mendigos foi descobrindo, um a um, a seus amigos do
Dinamo. Kordik deu trabalho a todos, se esforçando para que ninguém
descobrisse a manobra. Trusevich encontrou também alguns rivais do
campeonato russo, três jogadores da Lokomotiv, e também os resgatou. Em
poucas semanas, a padaria escondia entre seus empregados uma equipe
completa.
Reunidos pelo
padeiro, os jogadores não demoraram em dar o seguinte passo, e
decidiram, alentados por seu protetor, voltar a jogar. Era, além de
escapar dos nazistas, a única que bem sabiam fazer. Muitos tinham
perdido suas famílias nas mãos do exército de Hitler, e o futebol era a
última sombra mantida de suas vidas anteriores.
Como
o Dinamo estava enclausurado e proibido, deram um novo nome para aquela
equipe. Assim nasceu o FC Start, que através de contatos alemães
começou a desafiar a equipes de soldados inimigos e seleções formadas no
III Reich.
Em sete de junho
de 1942, jogaram sua primeira partida. Apesar de estarem famintos e
cansados por terem trabalhado toda a noite, venceram por 7 a 2. Seu
seguinte rival foi a equipe de uma guarnição húngara, ganharam de 6 a 2.
Depois meteram 11 gols numa equipa romena. A coisa ficou séria quando
em 17 de julho enfrentaram uma equipe do exército alemão e golearam por 6
a 2. Muitos nazistas começaram a ficar chateados pela crescente fama do
grupo de empregados da padaria e buscaram uma equipe melhor para ganhar
deles. Trouxeram da Hungria o MSG com a missão de derrotá-los, mas o FC
Start goleou mais uma vez por 5 a 1, e mais tarde, ganhou de 3 a 2 na
revanche.
Em seis de agosto,
convencidos de sua superioridade, os alemães prepararam uma equipe com
membros da Luftwaffe, o Flakelf, que era uma grande time, utilizado como
instrumento de propaganda de Hitler. Os nazistas tinham resolvido
buscar o melhor rival possível para acabar com o FC Start, que já gozava
de enorme popularidade entre o sofrido povo refém dos nazistas. A
surpresa foi grande, porque apesar da violência e falta de esportividade
dos alemães, o Start venceu por 5 a 1.
Depois dessa
escandalosa queda do time de Hitler, os alemães descobriram a manobra do
padeiro. Assim, de Berlim chegou uma ordem de acabar com todos eles,
inclusive com o padeiro, mas os hierarcas nazistas locais não se
contentaram com isso. Não queriam que a última imagem dos russos fosse
uma vitória, porque acreditavam que se fossem simplesmente assassinados
não fariam nada mais que perpetuar a derrota alemã.A superioridade da raça ariana, em particular no esporte, era uma obsessão para Hitler e os altos comandos. Por essa razão, antes de fuzilá-los, queriam derrotar o time em um jogo.
Com um clima tremendo de pressão e ameaças por todas as partes, anunciou-se a revanche para 9 de agosto, no repleto estádio Zenit. Antes do jogo, um oficial da SS entrou no vestiário e disse em russo:
- "Vou ser o juiz do jogo, respeitem as regras e saúdem com o braço levantado", exigindo que eles fizessem a saudação nazista.
Já no campo, os jogadores do Start (camisa vermelha e calção branco) levantaram o braço, mas no momento da saudação, levaram a mão ao peito e no lugar de dizer: - "Heil Hitler!", gritaram - "Fizculthura!", uma expressão soviética que proclamava a cultura física.
Os alemães (camisa branca e calção negro) marcaram o primeiro gol, mas o Start chegou ao intervalo do segundo tempo ganhando por 2 a 1.
Receberam novas visitas ao vestiário, desta vez com armas e advertências claras e concretas:
- "Se vocês ganharem, não sai ninguém vivo". Ameaçou um outro oficial da SS. Os jogadores ficaram com muito medo e até propuseram-se a não voltar para o segundo tempo. Mas pensaram em suas famílias, nos crimes que foram cometidos, na gente sofrida que nas arquibancadas gritava desesperadamente por eles e decidiram, sim, jogar.
Deram um verdadeiro baile nos nazistas. E no final da partida, quando ganhavam por 5 a 3, o atacante Klimenko ficou cara a cara com o arqueiro alemão. Deu lhe um drible deixando o coitado estatelado no chão e ao ficar em frente a trave, quando todos esperavam o gol, deu meia volta e chutou a bola para o centro do campo. Foi um gesto de desprezo, de deboche, de superioridade total. O estádio veio abaixo.
Como toda Kiev poderia a vir falar da façanha, os nazistas deixaram que saíssem do campo como se nada tivesse ocorrido. Inclusive o Start jogou dias depois e goleou o Rukh por 8 a 0. Mas o final já estava traçado: depois dessa última partida, a Gestapo visitou a padaria.
O primeiro a morrer torturado em frente a todos os outros foi Kordik, o padeiro. Os demais presos foram enviados para os campos de concentração de Siretz. Ali mataram brutalmente a Kuzmenko, Klimenko e o arqueiro Trusevich, que morreu vestido com a camiseta do FC Start. Goncharenko e Sviridovsky, que não estavam na padaria naquele dia, foram os únicos que sobreviveram, escondidos, até a libertação de Kiev em novembro de 1943. O resto da equipe foi torturada até a morte.
Ainda hoje, os possuidores de entradas daquela partida têm direito a um assento gratuito no estádio do Dinamo de Kiev. Nas escadarias do clube, custodiado em forma permanente, conserva-se atualmente um monumento que saúda e recorda àqueles heróis do FC Start, os indomáveis prisioneiros de guerra do Exército Vermelho aos quais ninguém pôde derrotar durante uma dezena de históricas partidas, entre 1941 e 1942.
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